Nossos

Publicado  segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A cama deles ali, e ele deitado como quem não quer nada, como quem nada pensa, sereno, meio de lado, peito aberto pra lua e sonhos encaminhados pra alguma outra pessoa bem mais leve do que ela conseguia ser. Ele ali, deitado na cama deles, abraçado com seus travesseiros, olhos entre abertos e poucas preocupações.
Do outro lado estava ela. Rosto virado pra parede, ombros tensos, olhos marejados por não saber mais se tudo aquilo que ela tem mania de chamar pelo possessivo de dois, realmente ainda lhe pertencia. Ficava pensando se era assim mesmo, depois de muitos anos, que os casais se separavam naturalmente. Sem brigas, sem escândalos, sem outras pessoas e sem problemas fáceis de estipular um motivo, um limite, um porquê. A cama perfeita, o lençol esticadinho, ele tinha o espaço certo de se mexer com folga e ela já tinha se acostumado a dormir toda encolhida na vontade de suprir o abraço, a conchinha ou o chamego que há tanto tempo não vinham.
Em poucos segundos ele adormecia e seu sono, junto com seus sonhos, iam para sempre mais longe, alavancados por cada um dos suspiros longos que ele suspirava ao dormir. Ela, muitos e muitos minutos depois, permanecia acordada, remoendo na sua cabeça todas as coisas que ela pudesse ter feito errado, matutando a noite toda se a culpa era dela.
E os dias eram tão ocupados, ela nos compromissos dela, ele nos afazeres dele, que ficava ainda mais difícil de entender o quê ainda segurava os dois juntos todas as noites, ali naquela mesma cama tão quieta e tão barulhenta. Se ela conseguisse emudecer seus pensamentos por um segundo, igual faz o controle da TV, seria realmente o quarto mais pacífico do mundo, nenhum barulho, nenhuma voz, nenhum sussurro, nenhum gemido, nenhuma jura de amor, nenhuma briga, nenhum nada. Sua cabeça a mil por hora, barulhenta e seu quarto calmo, cheio de nada.
Levantou de madrugada num impulso de gato, tão milimetricamente calculado que não esbarrou em nada, nem no silêncio. Vestia regatas, calcinha e meias. Vestiu calça jeans, casaco e botas. E foi embora.
Na manhã seguinte, depois de ter andado por horas sem saber exatamente pra onde estava indo, começou a sentir o ar entrando em seus pulmões, a cabeça ficando mais leve, sem tantas idéias de culpa que por tanto tempo ela tinha acreditado que devessem ser dela. Na manhã seguinte, ele acordou com frio. Olhou pro lado e sua cama de lençol perfeitamente esticado estava fria. Olhou dentro do armário e percebeu que todas as coisas dela ficaram lá ,não porque ela pretendia voltar, mas sim pra mostrar pra ele que não são as roupas, os livros ou os corpos de alguém que fazem aquela pessoa presente. Ela já não estava lá há tanto tempo.
Andou pela casa por vinte minutos. De um lado ao outro, meio atordoado. Sua cabeça começou a maquinar tantos pensamentos confusos, começaram a surgir, então, as dúvidas, as indagações, as sensações de culpa. Percebeu que estava sem ar.
Duas horas no pronto socorro depois, voltou pra casa e decidiu que não mudaria nada de lugar, porque embora ela tivesse ido embora na madrugada, como gato, sua cabeça poderia esfriar e ela voltaria, ela tinha que voltar. Mas o que ele esqueceu de pensar é que quem a mandou embora foi ele mesmo. Sua cabeça barulhenta não a deixava mais trabalhar, pensar, sorrir ou dormir. E agora, andando sozinha o vento batia em seus cabelos e sua alma estava quieta. Ela não tinha medo do frio ou da falta de abraço porque percebeu que quando se está sozinha, se algum abraço vier vai ser surpresa boa. Ela gostou da idéia de não ir dormir ao lado de certezas ruins todas as noites.
E o apartamento deles continuava sendo deles tanto no contrato, quanto na decoração e também dentro de cada armário e caixinha, onde ela deixou tudo aquilo que um dia foi dela mas que ela percebeu não precisar mais; percebeu que era nada mais que puro apego. O apartamento, a cama, os lençóis e os travesseiros deles, nossos, como sugere o pronome possessivo de dois e ele esperando que um dia ela voltasse.
O que ele não entendeu, no final, é que pra ser nós há de se ser um, dois em um, e o egoísmo dele fez com que ela percebesse que valia mais a pena ser feliz sendo só. A prisão que ele vive hoje em dia foi responsável pela libertação que ela vive agora.
E infelizmente, depois de tantos anos se sentindo culpada por tudo o que ela não fez, nesse exato momento, culpa era a última coisa que ela sentia. Ele está preso, mas ela está viva. Sem culpa.

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